quarta-feira, 13 de junho de 2018

Como a Coréia do Norte colocou o Imperialismo na defensiva?





Como a Coreia do Norte colocou o Imperialismo na defensiva?


Por Giovani Damico

Foto: RT


Como a Coreia do Norte colocou o Imperialismo na defensiva?
Por Giovani Damico



Nesta terça feira (12/06/18) o mundo assistiu à um episódio histórico sem precedentes: Um encontro entre o líder da Coreia Popular - Kim Jong Un- e a liderança estadunidense - Donald Trump-, o feito marca um novo período na história mundial, pela primeira vez desde a Revolução Cubana e a Vietnãmita os Estados Unidos não sofrem uma derrota (ou eminente derrota) política de tamanho impacto na correlação de forças internacional.

Todas as grandes mídias do mundo reportaram hoje sem exceção o episódico encontro ocorrido em Singapura. Cerca de um ano atrás de forma diametralmente oposta os grandes aparatos midiáticos alardeavam desesperadamente sobre a "ameaça norte-coreana" e a eminente guerra nuclear a ser desencadeada pelo "ditador ensandecido da Coreia do Norte". Tal retórica se fundamentava na premissa de que o programa nuclear desenvolvido pela República Popular Democrática da Coreia (RPDC) tinha como objetivo fundamental uma provocação de guerra, ou de fato um esforço de guerra nuclear a ser desencadeada contra Coreia do Sul, Japão e mesmo os EUA. Como discutido previamente neste blog ¹ tal programa nuclear tinha e continua a ter um caráter radicalmente distinto daquele proclamado pelos monopólios de mídia pró-imperial. O programa nuclear da RPDC detinha um objetivo defensivo, subordinado à uma estratégia de longo prazo de deslocamento da balança de forças na disputa pela soberania nacional, visando em última instância além da manutenção da revolução coreana, um avanço estratégico nos rumos da reunificação das coreias, bem como a liberação da península coreana da ameaça militar eminente dos EUA.

O Imperialismo em modo de defesa

Muito se tem a interpretar a respeito dos possíveis desdobramentos do encontro entre Kim e Trump, entretanto é evidente que os EUA pela primeira vez em décadas se viram obrigados à abandonar tanto em termos de retórica oficial quanto em termos de mudanças práticas em sua geopolítica e ação militar. Trump imediatamente após o término de sua reunião com Kim anunciou que os jogos de guerra (war games) estadunidenses na península coreana estão suspensos, além de acrescentar que esta é uma prática provocativa que coloca a segurança da península e do mundo em risco. ² Um presidente americano assumir publicamente que a política externa agressiva dos EUA põe o mundo em risco, e tem um caráter provocativo é um fato que demonstra a posição de cautela, preocupação e recuo em sua política externa.

A mudança na retórica oficial e na geopolítica estadunidense para com a Coreia do Norte se estabelece após um vertiginoso desenvolvimento do programa nuclear da RPDC orientado pela política Songun³, que nos últimos meses obteve diversos êxitos como a construção de bombas de hidrogênio (H-bomb) e o principal, o desenvolvimento integral dos misseis ICBM (Intercontinental Balistic Missil), que em termos práticos significaram que a RPDC não apenas possuia bombas nucleares de destruição massiva, como a capacidade para içá-las até as principais cidades dos EUA.

A política Songun orienta uma priorização em assuntos militares como forma de garantir a independencia da RPDC, e fazer avançar o socialismo coreano em meio a uma política cada vez mais agressiva do imperialismo, em especial pós colapso da URSS (IL, Kim Jong. 2016). Assim a política Songun se associa com os outros princípios da doutrina Juche como a da priorização da independencia, conquistada a partir da Guerra Popular Prolongada.  Portanto o recuo do Imperialismo aparece como fruto direto do sucesso da política norte-coreana de alavancar sua soberania nacional a partir de uma forte doutrina de segurança nacional e forte independência política.

Os resultados do encontro entre os líderes da RPDC e EUA ainda são todavia incertos, é sabido que sempre há possibilidade de reviravoltas e novas investidas da política imperialista. Os acertos preliminares obtidos na histórica reunião apontam para a desnuclearização da península coreana, o que implica num comprometimento da RPDC em abrir mão de suas armas nucleares, bem como suas instalações militares onde o desenvolvimento de tais armamentos foi realizado. A história mostra que a política imperialista é tão mais hostil, quanto menor for o poder de resistência das nações postas sob sua ofensiva, assim o acordo de desnuclearização vem em simultâneo a diversas garantias de segurança à integridade da Coreia do Norte, bem como saída do exército estadunidense da península Coreana.

Embora a presidência americana tente demonstrar que o seu comprometimento com a desnuclearização da península coreana foi um êxito em sua política externa, a desnuclearização significa na prática um abandono por parte dos EUA, de sua política hostil à Coreia Popular, bem como à desmilitarização da Coreia do Sul, que desde o inicio da guerra das Coreias, vive sob ocupação do exército estadunidense. Trump e os outros porta-vozes dos EUA buscam através das palavras suavizar os impactos do acordo, e acenam para a "paz mundial" como uma vitória para todos os lados. Em palavras oficiais Trump anuncia que de imediato estão congelados todos exercícios militares com a Coreia do Sul, e aponta de forma suavizada que a saída das Tropas americanas estacionadas na Coreia do Sul ainda não são um fato imediato, mas aponta que "em breve gostaria de ver suas tropas finalmente em casa". Assim num misto de "vitória da paz", redução de gastos militares e vontades de trazer os militares americanos para casa, aparece a retórica oficial estadunidense, adimitindo seu recuo em modo de defesa.

A ação de um lado da Coréia Popular, China, Rússia do outro dos EUA, Coréia do Sul e Japão.

O tabuleiro das relações internacionais, da geopolítica mundial e das disputas entre hegemonia e contra-hegemonia contam sempre com atuação de diversos atores, sendo alguns capturados pela hegemonia do imperialismo, outros forjados pela contra-hegemonia. Assim aparecem as históricas alianças entre RPDC e República Popular da China de um lado e entre Coreia do Sul, EUA e Japão do outro. O bloco contra-hegemônico se estabelece como fruto de uma política antiimperialista advinda da guerra popular prolongada, que apesar de suas grandes contradições internas e externas, continuam a fomentar uma contra-hegemonia que faz frente ao imperialismo estadunidense.

A China, aliada histórica da RPDC, no último ano se viu coagida por todos os lados à adentrar no regime de sanções contra a Coreia do Norte, assim como fez a Rússia, embora ambas nações tenham se mantido duramente críticas às Sanções e defendido uma política de não-interferência na península coreana. O programa nuclear coreano se tornou o principal argumento dos EUA para patrocinarem uma violenta guerra econômica contra a RPDC, que vinha acompanhada de vertiginosos exercícios militares nas proximidades da Coreia Popular, como formas de pressionar a nação a abandonar seu programa nuclear e ceder às vontades do imperialismo. A China embora principal parceiro econômico, político e militar da RPDC, adentrou parcialmente em algumas das sanções, também sob ameaça de guerra econômica em caso de insubordinação.

As sanções à RPDC forçaram uma situação dramática à economia do país que teve suas principais exportações embargadas, além de ter grande parte das importações de commodities reduzida. O que colocou sua economia em difícil situação. A China embora adentrando parcialmente nas sanções e tendo suas relações econômicas bem como taxas de importações e exportações com a Coreia Popular reduzidas, foi acusada sistematicamente de estar violando às sanções e continuar suas trocas econômicas com a RPDC 4. O Próprio Donald Trump acusou a China de violar as sanções em postagens no Twitter que foram criticadas pela China por falta de evidências.

A Relação da RPDC com a Rússia seguiu uma queda semelhante à da China, que manteve uma posição crítica ao imperialismo estadunidense, e manteve seus monopólios de mídia (Como RT, Canal 1 e Sputnik) sistematicamente relatando as interferências e provocações dos EUA nos assuntos coreanos, embora não tenha adentrado em nenhuma espécie de defesa intransigente da Coreia do Norte. A Rússia em sua política externa de relativa independência frente aos EUA, por vezes se coloca em favor de nações atacadas pelo imperialismo, o que por vezes tem efeitos antiimperialistas, muito embora tenha esta nação pretensões imperialistas em médio-longo prazo (discutimos melhor estas fortes contradições em outro artigo deste blog 5.

Assim segue o complicado tabuleiro da geopolítica na península coreana, de um lado a Coreia Popular com aliados de caráter estratégico (China) e táticos (Rússia) de outro os EUA e seus aliados, em caráter de forte subordinação política e ideológica (Coreia do Sul e Japão). Os novos desdobramentos da geopolítica da Coreia do Norte colocaram uma situação completamente nova, e fizeram a RPDC sair de um Estado de Sítio, com pressões econômicas e militares de todos os lados, para um estado de barganha e ganhos políticos (alguns em potencial) sem precedentes. A própria relação de subordinação da Coréia do Sul (que em termos práticos era uma semi-colônia estadunidense) aos EUA foi colocada em cheque. Assim além do recuo estadunidense, observamos a histórica reaproximação das Coreias, que contou com encontros entre o líder norte-coreano - Kim Jong Un-e o presidente Sul Coreano -Moon Jae-in- 6. Além da participação da Coreia do Norte nos jogos de inverno ocorridos na Coreia do Sul no início deste ano.


Reaproximação das Coreias





Kim encontra o presidente sul-coreano Moon Jae-in 
(https://www.huffpostbrasil.com/2018/04/28/conciliacao-entre-coreias-as-imagens-do-encontro-historico-entre-kim-jong-un-e-moon-jae-in_a_23422635/)

A Autodefesa e salvaguarda nacional aparecem como princípios fundantes da doutrina Juche (IL, Kim Jong, 2016) sendo parte desta doutrina a compreensão de que a Coreia é uma única nação, e a reunificação esteve sempre presente como parte da ideia de nação coreana. A reunificação da Coreia é portanto parte da linha estratégica do socialismo coreano, a reaproximação aparece como mais um elemento da reviravolta histórica alcançada pelo povo coreano.

A RPDC sai de uma posição de isolamento mundial, na qual acusada sistematicamente de ser um Estado Terrorista, uma ameaça à paz mundial e em especial ameaça à suas vizinhas Coreia do Sul e Japão, após a efetivação de um rápido desenvolvimento nuclear, associado com uma política de redução do militarismo em favor de seus objetivos estratégicos, consegue em poucos meses aparecer como ator não mais de desestabilização e ameaça, mas sim como ator da paz, reunificação e amizade dos povos. Mesmo o Japão nos últimos meses reduziu sua tônica agressiva e deixaram de figurar em suas mídias as diárias acusações contra a vizinha Coreia Popular.

Mídias da Coreia do Sul, bem como movimentos sociais, em uma guinada expressiva, passaram a ver com bons olhos a reaproximação, e surgem os primeiros esboços de planos econômicos e políticos para efetivar a reaproximação, como o anuncio do projeto de construir um trem-bala ligando à Coreia do Sul ao resto do continente asiático 7. Os encontros entre as lideranças coreanas trouxeram para a mesa séries de medidas de reaproximação. Além dos históricos encontros entre lideres coreanos Kim se fez presente duas vezes na China para alinhar sua estratégia com os aliados da China 8.

As bilaterais entre os líderes da Coreia Popular e China apontaram para um reforço da amizade de ambas nações, intensificação da cooperação entre nações socialistas, bem como reforço nos entendimentos das linhas políticas de cada lado. A Coreia segue portanto reforçando sua política de reunificação em consonância com a política Chinesa de integridade nacional e cooperação estratégica com países vizinhos, em especial a RPDC. A China tem dado apoio substancial à defesa da soberania nacional norte-coreana, bem como defendido a retirada ou ao menos relaxamento das sansões econômicas como forma de reduzir as tensões entre Coreia Popular e EUA. A reaproximação entre as coreias consiste também em interesse estratégico da China uma vez que a presença de tropas estadunidenses na península, além da instalação de equipamentos militares avançados como o sistema antiaéreo THAAD vem sendo duramente criticadodas pela China, que respondeu com ameaças militares e elevação da tônica contra as investidas bélicas dos EUA.

Futuro incerto porém encorajador

A luta dos povos contra o imperialismo vem sendo historicamente apontada pelo movimento comunista internacional, como elemento central de qualquer perspectiva de superação da ordem capitalista. Lenin formulou de forma fundamental em "Imperialismo: estágio superior do Capitalismo" como o imperialismo se apresenta enquanto fase avançada do desenvolvimento capitalista, que embora tenha passado por transformações nos seus padrões de reprodução, segue mantendo as características fundamentais verificadas por Lenin: consolidação dos monopólios capitalistas e sua expansão em nível mundial, financeirização do capital e aumento da exploração e acumulação no centro do capitalismo, dominação política e econômica das economias periféricas com consolidação de zonas de influência cada vez mais subordinadas ao capital imperialista 9.

O avanço da Coreia significa um recuo do imperialismo, e portanto consiste em uma grande vitória -ainda que parcial- da classe trabalhadora mundial. A paz duradoura na península coreana bem como em outras regiões do mundo como o oriente médio, e em particular a Palestina e a Síria, segue sendo inexoravelmente conectada à um progressivo avanço das forças antiimperialistas embasado num profundo movimento de autocrítica e resgate na esquerda mundial,  como nos alerta Losurdo (2016) 10. De modo que a luta dos trabalhadores organizados segue sendo a real alternativa para combater o imperialismo, e o neocolonialismo que o acompanha em seu atual estágio de desenvolvimento.

O prognóstico para a população coreana é animador, mostra que a linha política conduzida pela Coreia Popular vem se mostrando acertada, sobrevivendo as mais diversas e perversas adversidades. A Coreia Popular avança numa dimensão fundamental à luta política: a dimensão ideológica. As décadas que seguiram o colapso da URSS, foram regadas da mais irrestrita propaganda anticomunista, e propagações de teses sobre a morte do marxismo. A vitória Coreana aparece portanto como importante vitória ideológica, segue reforçando como a luta pelo socialismo, associada à luta pela soberania nacional, o internacionalismo e o antiimperialismo são as ferramentas fundamentais para a criação de um novo mundo e superação da ordem do capital. A Coréia do Norte aponta para reforço de ligações com outras nações agredidas como a Síria, e sinaliza uma visita histórica de Assad - Presidente da Síria- á Pyongyang 11.

O documento conjunto assinado por Kim Jong Un e Donald Trump e divulgado pela casa branca 12,  aponta para a retomada das relações diplomáticas entre os países, o comprometimento na instauração da paz duradoura na península Coreana, garantias por parte dos EUA para a segurança nacional norte-coreana, além do aprofundamento das medidas de restauração da paz, associadas à desnuclearização da península coreana. Embora o documento não aponte para uma retirada imediata das tropas estadunidenses da península e das sanções econômmicas, as declarações conjuntas e individuais apontam para este futuro. A China se pronunciou formalmente em apoio ao acordo, e sugeriu a retirada imediata das sanções impostas pelo conselho de segurança da ONU à RPDC como apontado por suas mídias oficiais 13, reforça ainda seu comprometimento com a paz duradoura na península.

O panorama embora positivo carrega sempre seus riscos. O programa Shogun e a doutrina nuclear da RPDC gestaram uma forte ferramenta de barganha, levarage, para a Coreia Popular, e abrir mão de seu programa embora parte de sua estratégia de longo alcance, carrega sempre uma margem de riscos. Estes riscos entretanto não podem ser confundidos com uma rendição ou capitulação por parte da RPDC como algumas análises apressadas e irresponsáveis vem apontando, mas muito pelo contrário, são elementos que foram postos na balança da estratégia coreana, que segue avançando em seus feitos. A própria desnuclearização da RPDC não significa uma total vulnerabilidade do país, uma vez que este ainda possui um exército regular altamente capacitado tanto em pessoal quanto armamentos regulares. Ademais a China segue reiteradas vezes apontando que se a RPDC for vítima de um ataque prévio de forças externas (preemptive strike), sem ter realizado ataques contra qualquer ameaça externa, esta será considerada agressão à própria China, que não hesitará em sair em defesa de sua vizinha.



Referências

¹ Leninster: http://leninster.blogspot.com/2017/09/por-que-coreia-popular-ameaca-o-japao-e.html

² Russia Today: https://www.rt.com/news/429467-us-skorea-halt-drills/

³ IL, Kim Jong. Sobre a ideia Juche. Edições Nova Cultura. 2016


4 South China Morning Post http://www.scmp.com/news/china/diplomacy-defence/article/2127530/china-north-korean-firms-still-trading-despite-shutdown

5 Leninster: http://leninster.blogspot.com/2017/05/a-nova-geopolitica-da-russia.html

6 Russia Today: https://www.rt.com/newsline/428417-korea-high-level-talks/

7 Business Insider: https://www.businessinsider.com.au/north-korea-south-korea-plan-railway-peace-declaration-2018-5

8 Xinhua http://www.xinhuanet.com/english/2018-05/08/c_137164420.htm

9  Lenin, Vladimir Ilitch. Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo. Expressão Popular, 2012

10 LOSURDO, Domenico. A Esquerda Ausente: Crise, Sociedade do Espetáculo e Guerra. Anitta Garibaldi. 2016


11 China  Global Television Network: 
https://news.cgtn.com/news/3d3d774d7a63444f77457a6333566d54/share_p.html

12 White House: https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/joint-statement-president-donald-j-trump-united-states-america-chairman-kim-jong-un-democratic-peoples-republic-korea-singapore-summit/

13 China Daily: http://usa.chinadaily.com.cn/a/201806/13/WS5b2028bda31001b825720003.html

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